Descriminalizar o aborto não é questão constitucional difícil
Este número precisa nos espantar: uma em cada cinco mulheres já fez um aborto ilegal no Brasil. Mas não, esta não é uma denúncia criminal, é denúncia de violação de direitos. Diferente do que dizem aqueles que acreditam em uma função de prevenção geral do direito penal, o que os dados expõem é que a lei não é eficaz para impedir que abortos aconteçam, mas é eficaz para submeter milhões de mulheres ao desamparo de procedimentos inseguros para a tomada de uma decisão reprodutiva necessária à sua vida. O que os dados mostram é que a lei penal que criminaliza o aborto viola o direito à saúde das mulheres no Brasil.
O aborto, quando feito em condições recomendadas, seja por profissionais de saúde treinados ou por medicamentos certificados, é considerado pela Organização Mundial da Saúde como um procedimento seguro, de mínimas possibilidades de complicações e insignificante risco de morte. O risco concreto está na sua realização clandestina: métodos inadequados podem expor as mulheres a graves infecções, hemorragias e cirurgias perigosas, que ameaçam a sua saúde ou as abandonam à morte. O abortamento legal já é reconhecido como um procedimento de saúde, e por vezes de importância tão central ao cuidado da saúde das mulheres que pode ser a única maneira de salvar a vida de uma mulher em risco; isso deixa claro como é uma necessidade de saúde e um cuidado médico. Permitir que a política criminal o negue para outras situações em que a saúde das mulheres se encontra em risco, seja pelo intenso sofrimento mental de não poder prosseguir com uma gestação, como por infecção por zika ou por outra razão, é enfraquecer a noção do direito à saúde como um direito fundamental. É dar proteção constitucional frágil à vida das mulheres.
Se essa leitura dos artigos da Constituição não permitir a todos chegar a essa conclusão tão facilmente, então voltemos aos dados de realidade. A mesma pesquisa que mostrou a magnitude do aborto ilegal no Brasil pôde também contar que o perfil da mulher que aborta é distante do imaginário compartilhado: ela é em geral católica, casada e já tem filhos. Esses dados não importam para fazer um novo julgamento moral sobre quem é a “abortista”, e sim para mostrar outra coisa: a mulher que aborta é comum e ao mesmo tempo uma multidão. A força do real precisa nos provocar se assumirmos que os direitos fundamentais só se garantem na vida concreta dos sujeitos.
Uma conversa comprometida com a efetivação do que assumimos como princípios organizadores da boa vida em nossa Constituição precisa olhar a vida de 1 em cada 5 mulheres comuns que abortam e entender que elas também são destinatárias dos direitos que anuncia. Se não fosse assim, precisaríamos assumir que as mulheres são cidadãs de segunda classe. Suas vidas importariam menos ao direito que a expectativa de proteção a um conjunto de células que nem mesmo encontra garantia de direito expresso na ordem constitucional.
Se há algo que não nos permite ver o aborto como uma questão constitucional razoavelmente simples é a controvérsia moral que ainda nos confunde sobre o que estamos falando quando discutimos a criminalização ou não da interrupção da gravidez. Crenças sobre o início da vida não são irrelevantes, mas importam apenas para as decisões de ética privada que cada mulher poderá tomar ao ser confrontada com a delicada decisão de prosseguir ou não com uma gestação em um momento de sofrimento. De um debate público, espera-se que se mantenha em termos públicos, sem expectativa de regulação da moral das mulheres ou famílias.
Em mais um dia 28 de setembro, nosso pedido é por acalmar as dores que o tema provoca para podermos ver a pauta da descriminalização do aborto em sua clareza: não é um debate constitucional difícil. É exigência da integral proteção ao direito à saúde das mulheres brasileiras.
Autora: Gabriela Rondon
Texto e imagem: https://www.jota.info