Daniel Callahan: uma vida dedicada à Bioética
O fio condutor do artigo de Daniel Callahan são suas memórias ao longo de quase meio século de engajamento na Bioética. Logo no início, o autor faz alusão a um livro que ele escreveu sobre sua vida, Search of the Good: A Life in Bioethics. Assim como no livro, Callahan não está interessado em focar particularidades pessoais, nem em autopromoção. Em um tom modesto, o autor utiliza uma linguagem direta, simples e fluida para narrar o seu caminho e suas contribuições para a Bioética. Callahan não é muito conhecido no Brasil, mas suas reflexões são muito relevantes para aquele que lida com os dilemas e aporias no campo da saúde. Nascido em 1930, ele foi influenciado, em suas primeiras investigações, pelo catolicismo romano (Callahan, 2012). Após ter sido recusado em Yale, ele foi estudar filosofia em Harvard. Callahan desejava ser como Sócrates, um inquieto investigador nas praças e nos mercados. Contudo, ele foi desencorajado por seus professores, pois nesta época a Universidade estava sob influência da filosofia analítica de Oxford e Cambridge. Concluído o doutorado, Callahan desistiu da vida acadêmica e foi trabalhar como editor em um jornal. Sete anos depois, ele se afastou do cargo de editor e também se distanciou das temáticas religiosas. No final da década de 60, ele publicou um livro sobre o aborto, Abortion: Law, Choice, and Morality. Esta obra moldou a maneira como ele iria escrever todos os seus futuros livros (Callahan, 2012). Ele partiu de uma abordagem “indutiva”, pesquisando a forma como o aborto foi tratado pela lei em todo o mundo. Depois ele tentou entender o papel que a questão desempenhou na vida das mulheres. Este livro ganhou notoriedade por ter sido citado em uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1973 (Callahan, 2012).
Nesta mesma época, o Callahan e o psiquiatra Willard Gaylin fundaram o Hastings Center, um instituto de pesquisa em Bioética sem fins lucrativos. Deve-se lembrar de que o termo “bioética” ainda não tinha sido cunhado. Não se pode dizer que eles inventaram a bioética, mas certamente eles foram os primeiros a institucionalizá-la. Callahan diz que seu interesse era, e continua sendo, focado em maneiras de se provocar reformas sociais que exijam mudanças fundamentais nos valores profundamente enraizados. Em outras palavras, o bioeticista busca formas para mudar toda uma sociedade. Por este e outros motivos o autor ficou conhecido como um inimigo da autonomia. Ele combate o discurso que reduz todos os valores humanos à autonomia, fortalecendo assim o individualismo (Callahan, 2015). Exemplificando, o principio da beneficência, de Beuchamp e Childress, se pauta no que se deve fazer de mais benefícios para o indivíduo; também o princípio da justiça luta para fazer com que todos tomem suas próprias decisões. Assim sendo, os princípios se reduzem ao indivíduo. Ao contrário de muitos, o autor nunca foi obcecado por encontrar um axioma ético que constituísse o fundamento último para a tomada de decisões éticas. Muito menos compartilha com a ideia de alguns filósofos que pensam que a Bioética possui uma falha, isto é, não conseguir desenvolver uma teoria ética sólida. Ele passa ao largo de debates como “deontologia-utilitarismo”. Ele também se mostra pouco atraído pelas teorias de John Rawls, pois este parece focar mais no bem individual. Callahan se diz atraído pelo conceito de solidariedade social como base universal dos cuidados da saúde. Mas o que seria solidariedade? Seria (Callahan, 2012) o reconhecimento das nossas finitudes, da nossa vulnerabilidade, comum às doenças e ao sofrimento, e a nossa dependência mútua para reduzir e aliviar esta vulnerabilidade. Devido à ênfase que o autor dá à solidariedade e ao comunitarismo, ele se aproxima das ideias de Alasdair McIntyre. Para Callahan, nós somos o que somos por causa da nossa história e do nosso contexto. Em outras palavras somos moldados pelas pessoas e pela cultura na qual estamos imersos. Ele argumenta que só se pode fazer ética no contexto de nossa cultura particular. Esse entendimento parece levantar a bandeira de um relativismo moral. Contudo é salvo do relativismo pela possibilidade de autoexame e a autocrítica da própria cultura. Estas ideias são refletidas nos seus livros e nas suas metodologias de pesquisa. Callahan frequentemente está comparando os modelos europeus e canadenses com os estadunidenses. Ele pensa que a cultura estadunidense é confusa, às vezes ela não passa de uma mistura de ideologias políticas conflitantes, um híbrido desajeitado.
Esta cultura não aceita, neste momento, um debate sobre o racionamento nos gastos em saúde em prol de um bem comum. Este debate pode florescer na academia, onde predomina uma elegância na escrita, mas sem nenhum impacto na sociedade. Voltando às suas memórias, os seus primeiros anos em Bioética foram marcados por três questões básicas: Como os avanços médicos podem afetar nossa compreensão dos objetivos e das práticas da medicina? Como eles vão afectar a nossa compreensão sobre a saúde e o bem-estar? Como elas afetarão a maneira como vivemos nossas vidas? Essas três questões emergiram nos anos 1970 e 1980. Depois deste período, estas perguntas foram gradativamente sendo colocadas de lado dando lugar a indagações clínicas e a problemas que envolviam políticas públicas mais concretas. Em 1987, Callahan foi convidado para um painel do governo que examinou o provável impacto de novas tecnologias sobre os custos do Medicare. Sua posição foi que o governo americano não poderia se dar ao luxo de pagar por este programa por ter um alto custo. Ao invés de aumentar os impostos, o bioeticista propõe que sejam cortados os benefícios dos idosos. Posição polêmica. Ele se baseia no fato que os países em desenvolvimento, ao sairem gradualmente da pobreza, têm experimentado um aumento na expectativa de vida e, com ele, as doenças crônicas oriundas do processo de envelhecimento. O envelhecimento e a morte fazem parte da vida, por isso essa alocação exagerada de recursos nos cuidados no fim da vida deve ser repensada. Defender esta posição exige coragem, principalmente porque a cultura reinante da medicina prega o contrário. Acrescenta-se que a medicina defende seus objetivos através de um discurso que pode se resumir nos seguintes pontos: (a) a morte é um mal que deve ser combatido; (b) a melhor maneira de curar as doenças é a pesquisa médica e a inovação tecnológica; (c) quando houver uma coalisão de interesses, a saúde deve ser priorizada em detrimento de outras necessidades sociais; (d) não deve haver limites para o progresso e inovações científicas; (e) a natureza deve ser dominada e manipulada para os fins dos seres humanos; (f) a autonomia tem prioridade sobre o bem comum. Segundo Callahan, o bioeticista não pode se conformar aos padrões tirânicos impostos por este discurso. Durante estes quase cinquenta anos de pesquisas em bioética, Callahan escreveu artigos sobre quase todos os temas: economia, pesquisa em seres humanos, entre outros. Até hoje, o autor gosta de escrever sobre diferentes tipos de problemas, temáticas variadas e novas formas de olhar para a ética. Recentemente, ele está trabalhando em um livro que ele considera seu último projeto ambicioso. Ele faz um estudo comparativo de cinco crises globais (rotuladas pela Organização Mundial de Saúde): aquecimento global, escassez de alimentos, qualidade e escassez da água, obesidade e doença crônica. Ele os denomina de “Os cinco cavaleiros”.
Estes temas foram escolhidos por uma característica comum entre eles: apesar dos governos internacionais gastarem bilhões com estes problemas, eles estão piorando cada vez mais. Segundo o bioeticista, as sociedades industriais que nos deram a prosperidade, também nos legaram o aquecimento global; o aumento da expectativa de vida trouxe um aumento de doenças crônicas; e as melhorias em nossas dietas, ironicamente, têm trazido comida mais barata que provoca obesidade. A principal conclusão que Callahan alcança é que a bioética tem de evitar o que ele chama de “elegância intelectual”. Também ela precisa se esquivar de uma incessante busca por aprovação dos colegas, visando atingir o público e os políticos. O bioeticista deve viver mais corajosamente. Ele deve detectar problemas desconhecidos para a maioria das pessoas, para depois arriscar indo para fora dos silos disciplinares, e por fim, encontrar maneiras de falar sobre isso de forma interdisciplinar. Callahan sempre tentou ser coerente com suas ideias. Ele busca entender e mudar a sua cultura, porém isso não o torna descontextualizado para nossa realidade brasileira ou latino-americana, pois suas análises estão sempre entre o local e o universal. Suas denúncias não se limitam aos problemas norte-americanos, elas vão mais além. Elas visam uma constante luta contra as diversas tirânias existente em nosso mundo globalizado e uma construção de uma cultura solidária em saúde pública através da Bioética.
Referências
1. Callahan D. In Search of the Good: A Life in Bioethics. Massachussets: The MIT Press; 2012.
2. Entrevista a Daniel Callahan. Entrevistadores: Joseph J. Fins e Diego Gracia. In: Revista Eidon, Bogotá, nº 24, p. 246-251, 2015.
Autor: Sussumo Matsui
Fonte: https://bioetica.catedraunesco.unb.br/